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CERVEJA ARTESANAL

Quando os primeiros flocos de neve começam a cair em Madison, a capital de Wisconsin, nos Estados Unidos, David Clay tem sua garagem aquecida para o inverno. O calor das panelas que produzem cerveja preenche o espaço da casa com o aroma doce do fermentado. Aos 30 anos, o especialista em tecnologia da informação é apaixonado por fazer a própria bebida. O hobby começou em 2013, quando David ganhou do sogro um kit para o preparo, e hoje, além da garagem, a produção engloba todo o porão da residência.

- Eu amo ter um hobby que me coloque em contato com gente, que me faz passar tempo com amigos que também produzem. Eu sinto orgulho quando vejo as pessoas experimentando e apreciando minha cerveja. Fazer e provar é duplamente prazeroso – diz.

- O hábito  de fazer cerveja é algo anterior à própria existência dos Estados Unidos – afirmou.

Fruto de um hábito antigo, iniciado com a chegada dos primeiros colonos ingleses, a prática de fazer cerveja caseira é passada de geração a geração na cultura estadunidense.

- É algo anterior à própria existência dos Estados Unidos. Houve produção de cervejas caseiras aqui já no século XVI e início de XVII – explica Garry Glass, diretor da Associação Americana de Cervejeiros Caseiros. A atividade foi proibida com a promulgação da lei seca em 1920 e legalizada apenas em 1978. De lá pra cá, popularizou-se – disse.

Hoje, estima-se que haja pelo menos 1,2 milhões de cervejeiros artesanais nos Estados Unidos.

- É um número muito expressivo, porque quer dizer que 1 em cada 200 adultos faz a própria cerveja – diz Glass.

O gosto pelo produto manufaturado se reflete no mercado da bebida artesanal do país. De acordo com Brewers Association, em 2015 o nicho movimentou 22,3 bilhões de dólares

Peter Gentry, de 36 anos, foi um dos amantes da fabricação caseira que viu no hobby uma oportunidade de negócios. Em 2004 ele presenteou seu pai com um kit para produção no dia dos pais.

- Seria uma atividade para fazermos juntos quando eu fosse visitá-lo – conta.

O rapaz gostou tanto da prática que pediu para levar os equipamentos para sua casa, onde começou a se dedicar às receitas e aumentar a produção. Em 2010, após participar da US Beer Tasting Champions, uma competição nacional de cervejeiros profissionais dos Estados Unidos, e ganhar menção honrosa ao lado de grandes nomes, Peter entendeu que tinha potencial na área.

Dois anos depois, o passatempo de pai e filho fez Peter abrir mão de seu emprego no marketing de um jornal local e criou a companhia One Barrel, sua marca de cerveja artesanal. Ele abriu o próprio pub e hoje produz 2.800 barris por ano, com 80 tipos de cervejas revezando-se no cardápio.

- Desde 2012, crescemos 50% por ano, mas neste ano projetamos um crescimento de 400% – afirmou.

Mercado incipiente

Enquanto nos Estados Unidos a produção de cerveja artesanal é uma atividade consolidada, no Brasil ela ainda é uma prática incipiente, mas com campo aberto para expansão. Com 14 bilhões de litros de cerveja produzidos em 2014 e faturamento de 70 bilhões de acordo com a Cervbrasil, o país ocupa o terceiro lugar no ranking mundial de fabricação da bebida, atrás apenas da China e Estados Unidos, e na 27ª posição mundial, com consumo de 66,9 litros por pessoa.

A produção artesanal hoje representa 1% do setor cervejeiro nacional, mas, de acordo com a Associação Brasileira de Bebidas (Abrabe), a tendência no crescimento deve levar o país a atingir 2% da fatia do mercado de cervejas em dez anos.

- Estamos vivendo hoje o que os EUA viveram após os anos 80. Então ainda temos muito espaço para conquistar – afirma Pedro Paranhos, supervisor de Comunicação da rede de franquia Mestre-Cervejeiro.com.

Para Garry Glass, que esteve em 2014 no Brasil, o país deve caminhar mais rápido que os Estados Unidos na popularização do segmento:

- A produção de cerveja caseira, artesanal, no Brasil é provavelmente comparável ao que tínhamos há 15 anos nos Estados Unidos. Mas eu acredito que não levará 15 anos para o mercado brasileiro chegar onde estamos – afirmou.

Confirmando o crescimento, apenas entre 8 de abril e 17 de maio deste ano o número de cervejarias registradas no ministério da Agricultura passou de 320 para 397. Segundo o ministério, o aumento se deve à abertura do mercado para novas áreas, como as cervejas artesanais.

Engana-se quem imagina que o gosto pelo produto manufaturado é uma moda passageira.
Antes, segue uma tendência internacional desencadeada pela demanda do consumidor.

- O crescimento do mercado de cervejas artesanais é resultado de uma mudança inevitável no perfil de consumo – afirma Paranhos. – O que vemos no mercado de cerveja faz parte de um fenômeno muito maior da indústria alimentícia. Hoje as pessoas estão buscando produtos locais, orgânicos, diferenciados, que tenham uma história. Elas querem novos gostos e experiências, não querem apenas o que vem de grandes empresas, produzidos em grande escala e com qualidade reduzida – diz Peter Gentry.

Para o cervejeiro, a vantagem de ter um negócio artesanal é exatamente essa: a possibilidade de experimentar e manter a qualidade.

- Eu posso fazer um produto de alta qualidade e experimentar mais. Se eu fizer uma bebida que não tiver uma boa recepção do público, eu simplesmente não repito a receita, mas meu prejuízo não vai ser grande. Se algo dá errado na produção da Budweiser, seria uma perda enorme. Então eu posso arriscar – disse.

Garry Glass endossa essa vantagem:

- Não há limites para o cervejeiro artesanal. Ele é livre para tentar novas combinações de ingredientes e técnicas, possibilitando a criação de novos estilos. A única limitação é a imaginação de cada um – falou.

Foi criando novos sabores em busca de excelência que a Cervejaria Bamberg, de Votorantim (SP), recebeu mais de 130 prêmios nacionais e internacionais em dez anos de existência. A marca foi fundada em 2005 por Alexandre Bazzo, engenheiro de alimentos que ainda na faculdade se apaixonou pelo universo da fermentação.

- Quando tive contato com a cerveja artesanal, percebi que era algo bem mais amplo do que as grandes cervejarias oferecem, eram produtos com aromas, sabores, cultura, história. Então comecei a me aprofundar. Mas nesse tempo de começar a estudar cerveja e abrir a cervejaria, foram quase cinco anos – conta.

Hoje, Alexandre é jurado de importantes competições internacionais em países como Alemanha, Estados Unidos e Inglaterra e fabrica 26 rótulos pela Bamberg.

- Eu digo sempre que a cerveja artesanal é aquela fabricada pelo cervejeiro, e não pelo departamento de marketing. Fazemos cerveja de verdade, com alma, que representa a historia milenar desta bebida. Cervejarias artesanais são empresas familiares, fazemos o diferente – diz.

Se a prática da produção caseira da bebida abre porta para o surgimento de novas cervejarias, ela também cria oportunidades para negócios voltados ao oferecimento da matéria prima. Em meio a pubs e lojas de antiguidades na Moroe Street, uma das ruas de comércio mais famosas de Madison, a Wine and Hop Shop vende insumos para os amantes da prática.

Com 40 anos de história, o comércio local é referência na cidade e cria uma rede de colaboração entre os produtores de bebidas alcóolicas.

- Estamos sempre dispostos a conversar com todos nossos clientes sobre cerveja e vinho. Muitas pessoas nos procuram com dúvidas. Nós oferecemos cursos, encontros, com vários níveis de expertices, tudo para nossos clientes trocarem experiências e se conhecerem – conta Tom Rozeske, funcionário da loja. – Todos que trabalham aqui são apaixonados por cerveja. Eu comecei a fazer a minha na faculdade. E como todo cervejeiro, isso começa como um simples hobby e depois vira seu estilo de vida – disse.

Investir no cliente

Pensando nesse mercado que surge no Brasil e na lacuna de oferta que a Lamas Brew Shop apostou no setor. A marca surgiu em 2000 quando um grupo de estudantes de física da Unicamp resolveu começar a fazer cerveja caseira.

- Com o tempo percebemos que faltavam materiais específicos para se fazer a bebida. Depois de algumas viagens ao exterior vendo como as Brew Shops funcionavam, decidimos começar o nosso negócio – conta David Figueira, Diretor Executivo do Grupo Lamas.

Em 2011 foi aberta primeira loja em Campinas (SP), que oferece insumos, equipamentos e conhecimentos para cervejeiros caseiros. Hoje, a Lamas conta mais dois espaços, um em São Paulo (SP) e outro em Belo Horizonte (MG), além de realizar vendas online. Para esse ano, um novo polo no Rio de Janeiro deve ser aberto e, mesmo em meio à crise econômica, a previsão de crescimento da marca é de 40%.

- Começamos com algumas centenas de clientes e hoje mais de 20 mil cervejeiros caseiros compram conosco. Além de atender a cervejeiros caseiros agora temos um braço comercial atacadista, a Lamas Pro Brewing, especifico para atender microcervejarias artesanais e também outras lojas do ramo – explica Figueira.

Cerveja na panela

Uma vez que o setor é influenciado diretamente pela demanda de um consumidor com gosto mais apurado, investir nos clientes para criar uma cultura de bebida artesanal é imprescindível para o crescimento dos negócios. Pensando nisso, em Rio Claro (SP), o pub Companhia Paulista passou a promover cursos de produção de cerveja caseira em panela para os frequentadores do bar e degustações da bebida.

- Estou à frente do Companhia há 3 anos, o bar tem 20. Pegamos o local quase fechando e pensamos em alternativas para levantar o público. Investir em cervejas artesanais foi uma delas. Se é algo que tem se mostrado tendência, porque não desenvolver a cultura na região? – diz Mario Giroto, sócio proprietário do bar.

- Fazemos cerveja de verdade, com alma, que representa a historia milenar desta bebida – afirmou.

Assim, além de disponibilizar diversos rótulos, a casa dedicou-se ao público para criar nele um apreço pelo produto ofertado.

- Hoje, é difícil um bar específico para cerveja especial em uma cidade do interior sobreviver. É algo muito mais popular em grandes cidades em que já há gosto pelo produto. Agora, se desenvolvo a cultura, desenvolvo meu negócio – diz. Peter Gentry, da One Barrel, concorda. – Eu sei que minha cervejaria pequena faz sucesso aqui em Madison porque há uma demanda da população. Em cidades menores, onde a lógica de grandes empresas de bebida ainda permanece, eu não prosperaria. Não é algo fácil de se introduzir se não tiver uma educação – completou.

O investimento tem resultado. Em um ano, o Companhia Paulista já está em sua quinta turma de cervejeiros caseiros e transformou-se em uma referência do segmento da região. “Muita gente nos procura com perguntas sobre onde comprar produtos, dicas de produção. O retorno volta em lucro, mas em também em publicidade. Gente que nunca ouvir falar do bar chega até aqui porque soube de nós através dessas ações que estamos fazendo.”

- Não acho que seja um setor bom para quem é apenas um investidor. É uma profissão que exige muito trabalho, com retorno a longo prazo – disse.

É pela dedicação e retorno gradual que para investir no segmento de cervejas artesanais é necessário muita paixão.

- Não acho que seja um setor bom para quem é apenas um investidor. É uma profissão que exige muito trabalho pesado, braçal, com retorno a longo prazo. É um mercado para quem estudou muito e gosta de chão de fábrica – diz Alexandre Bazzo.

Se o requisito de amar a bebida for satisfeito, o ingresso no ramo promete muita realização. Na opinião de Pedro Paranhos, a perspectiva é que o mercado de cervejas artesanais continue crescendo por muitos anos, gerando empregos e oportunidades de negócio.

- Nós ainda estamos no começo de uma verdadeira ‘revolução’ cervejeira”, e quem aproveitar esse momento trabalhando com comprometimento, paixão, conhecimento e ética certamente colherá os frutos – diz.

Fonte: Globo Rural



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