Couro de Peixe

COURO DE PEIXE TEM RESISTÊNCIA TESTADA

Pesquisa desenvolvida pela Embrapa Pecuária Sudeste (SP) deve impulsionar no País um valioso mercado em franco crescimento no mundo, o de produtos feitos com couro de peixe. O pesquisador Manuel Antônio Chagas Jacinto está avaliando a resistência desses materiais à tração e ao rasgamento, informações fundamentais à indústria manufatureira de couros não convencionais.

O objetivo é estabelecer um protocolo para os testes de qualidade do couro de peixe feitos em laboratório. Para isso, ele compara duas metodologias para análise das peles: uma com cortes inclinados e outra com cortes transversais e longitudinais. O diferencial do estudo é que as amostras estão sendo retiradas de tilápias grandes, de aproximadamente 3,5 quilos, com superfície maior para que seja possível recortar amostras repetidas, reduzindo as chances de erro.

Os estudos estão em fase adiantada e fazem parte do projeto “Ações estruturantes e inovação para o fortalecimento das cadeias produtivas da aquicultura no Brasil” (BRS Aqua), iniciado no ano passado, que envolve mais de 20 centros de pesquisa da Embrapa, cerca de 270 empregados da Empresa e recursos financeiros da ordem de R$ 57 milhões. São cerca de R$ 45 milhões do Fundo Tecnológico do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES/Funtec), R$ 6 milhões da Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca (que estão sendo executados pelo CNPq) e contrapartida de R$ 6 milhões da própria Embrapa.

Como o mercado usa as informações da pesquisa?

“No caso dos mamíferos, mais usados comercialmente, os curtumes utilizam esse tipo de informação para atender especificação do comprador”, explica Jacinto, que prevê uso semelhante nas fábricas que processam o couro de peixe.

O comprador de couro solicita do curtume determinada especificação técnica obtida por meio de uma metodologia prevista em norma. Suponhamos que a Nike esteja comprando couro para fazer calçado. Ela informa ao curtume que o couro deve apresentar um determinado resultado quando submetido aos testes que utilizam a norma americana para tração, que é a American Society for Testing and Materials (ASTM).

O cliente indica a metodologia e a especificação ao curtidor, que solicitará os testes a algum laboratório reconhecido de avaliação da qualidade. O laboratório emitirá o relatório apresentando o resultado dos testes, que é enviado à Nike. Empresas grandes como Nike e Adidas, por exemplo, contratam seus próprios técnicos para fazer esse acompanhamento dos trabalhos no curtume e também no laboratório.

No caso de peles não convencionais, há expectativa de que as especificações técnicas definidas em normas também passem a valer.

“Chegará o momento em que os compradores dessas matérias-primas também vão solicitar aos curtumes couros com determinadas especificações técnicas adequadas à produção de bolsas, sapatos e roupas”, prevê o cientista.

Ele conta que como ainda não existe norma que defina a localização e posicionamento de retirada dos corpos de prova (amostras da pele já curtida) nos couros de répteis, aves, anfíbios e peixes, estudos como o da Embrapa poderão subsidiar a comissão de estudos do Comitê Brasileiro de Couro, Calçados e Artefatos de Couro da ABNT (ABNT/CB011) e da União Europeia para definir as especificações e a metodologia para os testes de resistência desses couros. Essas comissões utilizam as publicações em periódicos de grande impacto como subsídio para a revisão das normas existentes ou na proposição de novas normas.

Subsidiando normas internacionais

O protocolo que o pesquisador deve adotar deverá ajudar a compor normas internacionais para retirada de amostras de animais não mamíferos para pesquisas. Hoje existem padrões para a coleta de peles de mamíferos, mas não há metodologia específica para coleta de amostras de peles de aves, répteis, anfíbios e peixes.

Para os primeiros testes, Jacinto obteve em Santa Fé do Sul (SP) 45 tilápias com peso mínimo de 3,5 quilos, que têm superfícies maiores para viabilizar os estudos.

“Fizemos o curtimento, conforme previsto no projeto, e retiramos os corpos de prova para fazer a avaliação qualitativa.”

Um experimento realizado no laboratório da Embrapa Pecuária Sudeste usou cortes inclinados do couro de tilápias e outro deverá usar cortes longitudinais e transversais da mesma espécie. Com isso, os cientistas pretendem comparar os dois formatos em critérios como facilidade de processamento, rendimento e resistência do material.

Adaptando o protocolo para mamíferos

Jacinto explica que a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) passou a adotar a transcrição de normas internacionais, as chamadas ABNT NBR ISO. A ABNT NBR ISO 2418, de 2015, determina como e de que parte do couro do mamífero deve ser retirada a amostra (corpos de prova).

“O escopo dessa norma se aplica a todos os tipos de couro derivados de mamíferos, independentemente do curtimento utilizado. Mas não é aplicável a couros derivados de aves, peixes, anfíbios e répteis. Para esses animais, é preciso ter outra forma de definir a localização de retirada dos corpos de prova em função da disposição e do arranjo dos feixes de fibras de colágeno e da espessura das peles”, justifica Jacinto.

O pesquisador explica ainda que os feixes de fibra de colágeno nos mamíferos são distribuídos de forma diferente se comparados aos peixes, aves, anfíbios e répteis.

“Eu uso essa norma que determina as direções longitudinal e transversal, mas uso também a direção inclinada, que é exatamente a direção dos feixes de fibras de colágeno no couro do peixe”, afirma.

Esses feixes se distribuem de forma semelhante a um novelo de lã, com fios inclinados em relação ao comprimento da pele e posicionados paralelos, no mesmo plano, formando uma camada.

“Depois vem outra camada com outra inclinação. Isso é muito característico no peixe porque dá alta resistência, porém pequena espessura, se diferenciando dos mamíferos e das aves”, diz o pesquisador.

Couro de peixe é valioso no mercado de moda

Produtos confeccionados a partir de couro de peixe, de avestruz e de répteis abastecem um nicho de mercado bastante exigente.

“Nicho envolve a questão de moda, que vai e vem. Moda sempre volta”, comenta Manuel Jacinto.

Segundo ele, no caso de peles convencionais, esse fluxo é perene e mais dinâmico porque, de um ano para o outro, as feiras internacionais ditam as tendências.

No caso das peças feitas a partir de couros de bovinos, caprinos, ovinos e até suínos, os fabricantes adequam, sugerem acabamentos e cores diferentes, inovam nas estampas.

“Já as peles de nicho, nas quais o couro de peixe se insere, vão e voltam com mais ou menos força dependendo do ano. Elas são produzidas sempre, tipo underground, e depois a procura dá um boom, em seguida volta ao estado anterior, mas nunca acaba”, garante.

Nina Braga é diretora do Instituto E, uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) que atua na criação e gestão de uma rede voltada ao desenvolvimento humano sustentável. Segundo ela, a organização desenvolve projetos como o e-fabrics, que identifica matérias-primas sustentáveis que possam ser utilizadas pela indústria têxtil e pela cadeia produtiva da moda, estimulando a cultura de consumo consciente. O projeto promove estudos de impactos socioambientais no processo produtivo, a preservação da diversidade e das relações sociais com comunidades, criando produtos com design.

Entre 2000 e 2006, o projeto foi incubado pela Osklen, uma das maiores fabricantes de peças de couros não convencionais do mercado mundial. Em 2007, o e-fabrics foi lançado na São Paulo Fashion Week. O projeto levou Nina a conhecer melhor o manejo sustentável do pirarucu na Amazônia, prática adotada pelo instituto Mamirauá há 20 anos.

Nina tem conectado os ribeirinhos ao mercado da moda, articulando os atores que fazem parte dessa cadeia. Em janeiro ela esteve na Neonyt, uma feira voltada ao conceito de fashionsustain (moda sustentável). O evento reuniu em Berlim atores ligados ao mundo da moda, mas que operam dentro de uma abordagem voltada para o futuro, conectando tecnologia e conscientização sustentável. A Neonyt propõe a condução de um processo de mudança na indústria da moda, prevendo lucros não apenas para empresas, mas também para as pessoas e o meio ambiente.

Piracuru no foco

“O mercado de couro de peixes está se expandindo. Hermès e Armani estão produzindo. A Osklen, que é pioneira nesse processo no mundo, aposta muito nesse nicho”, afirma.

Nina conta que o mercado se interessa bastante quando descobre o conceito de sustentabilidade por trás das peles.

“Quando ficam sabendo que é desmatamento zero, que aumenta a renda dos ribeirinhos, que o peixe é fonte de proteína para essas comunidades amazônicas e que a pele seria descartada, eles querem o pirarucu”, relata ela, ressaltando a tendência de crescimento do mercado desse couro.

“Se uma bolsa Chanel custa US$ 5.000, o consumidor consciente prefere pagar US$ 1.500 em uma bolsa de pirarucu que tem um conteúdo socioambiental mais rico”, avalia.

Em novembro de 2018, Gisele Bündchen desembarcou no Brasil com uma bolsa feita de couro de peixe de R$ 3,9 mil. O custo alto é explicado pela logística complicada. Segundo a diretora do Instituto E, o material sai refrigerado de Jutaí, no Alto Solimões, para uma viagem de 26 horas em lancha rápida. Depois é transportado por cinco dias em caminhões com câmera fria.

“E ainda fazemos questão de remunerar bem os ribeirinhos”, explica.

Eduardo Filgueiras, sócio da Nova Kaeru, no Rio de Janeiro, um dos maiores curtumes especializados do País, trabalha atualmente com pirarucu e salmão. O curtimento de couros de peixe começou em 2008 e, segundo ele, até 2014 o ritmo foi lento. Em 2015, a procura aumentou nos Estados Unidos e há uma tendência de utilizar essa matéria-prima na moda country. Ele conta que na Europa o mercado é cíclico: lançam produtos em uma coleção e às vezes não utilizam na seguinte.

“Praticamente fomos nós que colocamos esses couros no mercado internacional”, afirma.

Mercado promissor para couro de tilápia

Salvador Ricciardi Júnior é proprietário do curtume Rana Peles, em Guaxupé (MG). Ele conta que o auge do couro de tilápia foi entre 2010 e 2013, quando havia uma fábrica especializada em produtos de couro de peixe e búfalo em Goiânia. O empreendimento fechou em 2014. De lá para cá, os fabricantes têm preferido couros de peixes maiores, como o pirarucu.

“O problema da tilápia é o couro pequeno, o que exige muito emenda”, conta.

Ainda assim, há procura. Ele tem fornecido couro de tilápia para a produção de botas de uma fábrica de calçados em Andradas (MG) e para a produção de bolsas, carteiras e cintos de um fabricante do Braz, em São Paulo. Segundo ele, há fábricas que utilizam essa matéria-prima em nas cidades paulistas de Franca, Barretos e Campinas.

Atualmente Salvador trabalha com tilápia em escala comercial. Ele começou em 1987, quando abriu um criatório de rã, em uma época em que a pele desse animal tinha muito valor. Hoje trabalha com peixe, bucho de boi (retículo bovino), jacaré e avestruz.

 

“Com rã não trabalho mais porque é um mercado muito difícil.”

No ramo de peixes, conta que já curtiu pacu e outras espécies.

“Compro as tilápias na região. Aqui na represa de Furnas há pescadores e um criatório em gaiolas. Recebo a pele congelada e limpa, sem a carne.” “Clientes preferem preto, café, tabaco e havana (castanho alaranjado). Às vezes pedem um bordô para fazer algum acabamento”, revela.

A qualidade do couro que recebe é boa.

“Vem tudo direitinho, classificado. Peço tilápias acima de um quilo. Normalmente os peixes são abatidos com 700g a 800g, que é o peso mais viável para a carne. Para deixar mais tempo, aumenta o custo para o produtor,” explica.

Fonte: Embrapa



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